PANDEMIA

Por Margherita Dias- Abril/2020 

Ilustração: Claudia Marandino

A pandemia acabou! A pandemia acabou!  Acabou, gente! Acabou!!!

Os gritos me levaram à janela da sala. Do alto chamei um passante: Ei! psiu! aqui em cima na janela! O homem olhou para alto e me localizou. O que estão falando por favor? o quê?! pode repetir? a pandemia acabou?! Sim a pandemia acabou! Tem certeza? não é brincadeira não? onde ouviu isso? Pronunciamento do ministro na TV não viu?! ele confirmou a pandemia acabou A-C-A-B-O-U! E saiu saltitante atrás da multidão.

Suspirei aliviada. Depois pausadamente respirei várias vezes, até acalmar meu coração. Contemplei o céu e agradeci por estar viva. Estado de graça deve ser isso, pensei.

A visão das pessoas na rua era um sonho… Crianças, idosos, médicos, garis, policiais, todos se abraçando, dançando, pulando, gritando a pandemia acabou.  Alegria desmedida. Deliciosamente contagiante.     

Então era verdade.  A pandemia finalmente acabara. Um processo que durou quase dez anos devido às mutações contínuas, sistêmicas, desse maldito vírus oficialmente apresentado à humanidade em 2020. Um vírus que não escolhia vítimas por sexo, idade ou religião, que não se contentou em infectar a raça humana, que contaminou também outros mamíferos. Um vírus que abalou a conformação política, econômica, social e ambiental de todas as nações do mundo. Foram anos terríveis, de medo, isolamento social, escassez de recursos, enfermidades e mortes. Muitas mortes. De conhecidos, parentes de amigos, de pessoas públicas, de pessoas desassistidas. Um terço da população mundial foi dizimada. Toda vez que se acreditava estar saindo de uma crise, que as estatísticas comprovavam o declínio do número de mortes e infectados, que os gráficos apontavam um patamar mínimo de contágio, que se começava a pensar na reconstrução de cidades, uma nova pandemia se instalava. Contaminação mais rápida, mais mortes, mais colapsos de sistemas de saúde, mais países à bancarrota. Gurus espirituais evocaram mantras, líderes religiosos prometeram curas milagrosas. Muitos foram desmascarados, alguns pressionados por fiéis e pela falência de seus templos se suicidaram. Muitas religiões sucumbiram, outras tiveram que rever seus dogmas, credos, para se manter nesses novos tempos. Outras fés surgiram.

Anos que nos obrigaram a mudar os paradigmas para vencer o vírus, para garantir a vida no planeta. Houve grande evolução na consciência individual e coletiva. Com os Estados falidos, as empresas multinacionais, os grandes investidores e detentores de grandes fortunas se viram obrigados a investir pesadamente em todas as áreas de conhecimento, principalmente em pesquisa científica. Tiveram que focar na melhoria da saúde universal, na redução da desigualdade social, na democratização de infraestruturas e tecnologias. Regimes políticos baixaram a crista, esqueceram conceitos do neoliberalismo, reinventaram seus discursos, apostaram na diplomacia, a fim de reestabelecer a economia mundial. Redescobrimos todos a cadeia de causa e efeito, a interdependência social, e fizemos o “mea culpa”: se alguns não se protegem ou não são protegidos, todos estamos vulneráveis.

A natureza agradecida resplandeceu ao longo desses anos. Mostrou que a redução da interferência do homem no meio favoreceu a recuperação ambiental. As medidas de isolamento social desaceleraram a produção industrial, reduziram significativamente o fluxo de pessoas, diminuíram a concentração de dióxido de nitrogênio na atmosfera, reduziram a queima de combustíveis fósseis, diminuíram os impactos ambientais. O ar ficou mais puro, as águas mais límpidas, o céu de um azul mais nítido, as condições do habitat natural de animais silvestres e urbanos tornaram-se melhores.   

Foram anos duros, dificílimos, mas parece que aprendemos alguma coisa. Nas ruas as reações de alegria e esperança nos corações abatidos comprovavam isso.

Acreditava-se agora que os próximos anos seriam promissores, que os acontecimentos terríveis que vivenciamos tinham plantado novas sementes para um mundo melhor. Quem sabe agora se estabelecia uma nova ordem mundial…

“Alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial… alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial…”

Era a canção de Caetano ecoando baixinho, baixinho, dentro da minha cabeça. Mas aos poucos o volume foi crescendo, aumentando, aumentando, até ficar insuportável.

Irritada virei para o outro lado, espanando com a mão a mesinha de cabeceira até acertar o despertador, que caiu no tapete e silenciou.  Confusa, nauseada, com dor de cabeça – não sei se devido ao excesso de vinho da noite anterior, permaneci deitada, fitando o teto, buscando detalhes à minha volta. Era meu quarto. Disso eu tinha certeza. Sem pressa sentei-me à beira da cama, e tateei com os dedos dos pés o tapete até encontrar meus chinelos. Calcei-os trocados sem me importar. Ao levantar, avistei o relógio no chão, marcava seis horas. Pensei comigo, que diabo de hora para se acordar!

Cambaleando dirigi-me ao banheiro. Lavei o rosto, olhei-me no espelho, eu estava péssima. Considerei tomar um banho demorado para acordar de vez. No boxe, abri pouco a torneira e deixei a água morna cair delicadamente sobre meu rosto, escorrer por meus cabelos, por meus ombros. O calor da água e o aroma de capim-limão do sabonete trouxeram-me conforto, e lembranças da noite passada.  Aos poucos fui ligando os pontos. Eureca! era isso: a pandemia tinha acabado! Nasci de novo.

De robe, fui cantarolando até a cozinha para preparar meu café da manhã. Eu estava animada e com apetite. O gato, que veio me acompanhando desde o banheiro, entrecortando minhas pernas, esfregando sua cauda, também tinha fome. Resolvi lhe dar preferência. Abri a porta do armário sobre a bancada para pegar o sachê de atum e deparei com a folhinha grudada na lateral da geladeira. O ritual de riscar os dias idos com caneta vermelha para contabilizar a quarentena importunou-me. Seria possível?! Corri à janela da sala para observar a rua…  Silêncio e solidão.

Peguei meus óculos no quarto e voltei à cozinha para conferir. A folhinha era de abril, abril de 2020! Não podia ser, não podia ser, eu repetia. Não podia ser.

Desolada, apoiei-me na mesa da cozinha e danei a chorar. Chorei até, até cicatrizar. Então lembrei do gato que ronronava. Pus sua ração no pratinho e a chaleira no fogo, com água para fazer o chá. Enquanto esperava a fervura, ia digerindo a realidade.

Chá pronto, fui me sentar na varanda para desfrutar do sol pálido e do silêncio – a única graça concedida pelo isolamento. Ouvir seu som me acalentava.

Do alto a vista das copas das árvores era uma cordilheira verde, encurralada por telhados e terraços.  Os passarinhos em alvoroço brincavam, pousando nos galhos ora de uma ora de outra árvore. As andorinhas riscaram o céu com movimentos precisos como os do balé no gelo. Um grupo espalhafatoso de maritacas passou fofocando, senhoras disputando atenção. No telhado vizinho um sabiá convencido impôs sua oração.

Naquela manhã de outono fui sorvendo o chá e as delicadezas oferecidas. Era abril de 2020. E minha vida não ia mudar tão cedo.

                                                                  Margherita Dias- Abril/2020                 

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